sábado, 13 de março de 2010

FUNK É RAP?

No ano passado o percussor do movimento Hip-Hop Afrika Bambata em visita a Rocinha - maior favela da América latina - deu a seguinte declaração: “A batida do funk é hip-hop, o hip-hop do Brasil tem que agregar o funk como quinto elemento”. A frase de Bambata repercutiu muito no movimento Hip-Hop, e parece ter causado estranhamento aos manos naquele momento. Eu estava em Foz do Iguaçu-PR quando encontrei meu amigo e irmão de hospício, militante do coletivo Cartel do Rap, Mano Zeu de sobrancelha baixa, lendo a revista Rap Brasil e preocupado com a fala de Bambata, naquela ocasião ele deu a seguinte opinião “o que é isso aqui mano, funk virar hip-hop, não vai rolar”.
Para mim essa idéia também não se sustentava, na minha visão como é que o Funk que se apresentava como uma música de curtição ia se misturar com o Rap uma música que bate de frente e denuncia às mazelas sociais. Mas passado alguns meses eu e Zeu viemos fazer um curso de formação de Agentes Culturais Populares no Rio de Janeiro e lá descobrimos que também há funk’s de protestos, uma música que também retrata a vivencia e sobrevivência da periferia, e que pautam uma série de noções reivindicatórias para essa classe periférica. Assim conhecemos um outro tipo de Funk que não é o que é vinculado pela grande mídia, não é o que vende milhões e nem será encontrado com a mesma facilidade nas lojas de discos e shoppings. Esse Funk mais politizado tem uma proporção muito menor ao funk estilo “cachorrão” que toca diariamente nas rádios e movimentam as baladas e boates em Foz do Iguaçu. Assim percebi que nossa visão sobre o Funk foi modificada, e de que na verdade vimos o

Funk num sentido único e homogêneo não conhecíamos outro tipo de Funk e pensávamos que nesse gênero predominava a música para festa, agitação e curtição. Tive a oportunidade de conhecer o outro lado da moeda do Funk, o que hoje me agrada muito, o Funk com um caráter reivindicatório que aparece como uma forte expressão daquela parte da cidade que é constantemente criminalizada.
Sabendo que há muito preconceito desse gênero por parte de pessoas ligadas ao Hip-Hop e que muitos vêem no Funk um caminho de mão única, a música com batida contagiante e com pouco conteúdo, e nomes como Bonde do Tigrão, Tati Quebra Barraco, MC Creu, entre outros, vêm sempre a mente, parece que esses são os artistas frente ao movimento e nomes como Cidinho e Doca, Mascote entre outros foram apagados e silenciados da nossa memória. Resolvi apresentar aqui um outro Funk rompendo com essa modinha de mulher fruta que aparece diariamente na televisão.
Dessa forma selecionei três letras para repensarmos o Funk Carioca e fazer uma discussão se o Funk é Hip-Hop ou não. A primeira música é do MC pingo do grupo Força do Rap do complexo de Acari e diz assim:
“Quem é você para falar dos meus erros, tu não me conhece não sabe quem sou / a luta que tive, a fome que minha família passou / aonde tava você na hora do perrengue, porque você não tava lá seu doutor? / a sociedade hoje fala de mim mais ninguém me ajudou\ todo mundo fala que eu ando armado, ninguém fala que já tentou me matar / o tempo que o rodo subia o morro pra assassinar / e eu na favela botando o terror para matar os moleque pegar o dinheiro / desculpa doutor para chorar minha mãe chora a deles primeiro / Lá no morro o barraco na chuva descia, mamãe lavadeira trabalha em casa de família / papai desempregado piorava a situação, alcoolizado na rua sempre de agressão / Não

tive chance pois não nasci herdeiro não, só fiz o que achei certo peço a Deus o perdão / é assim que o moleque dizia, é assim que o moleque falava / no beco de uma favela pra um repórter que o entrevistava”.
A música retrata a vida de um jovem da periferia Carioca, mostrando desde as principais dificuldades como a fome até a desestrutura familiar com o pai alcoólatra e a mãe que trabalha fora, lavando roupa para a família da classe média. No decorrer da canção até a chacina e violência policial são questionados assim como a condição de moradia precária, entre uma gama de sentidos narrados pela experiência de muitos jovens oriundos da periferia, a música ainda revela um diálogo entre um repórter e um moleque favelado que desabafa: “não tive chance, não nasci herdeiro, só fiz o que eu achei certo”, revelando uma vida desregrada que culminou no seu envolvimento com o crime.
Agora vamos pegar o segundo exemplo, o do Mc Bacardi, morador da Cidade de Deus.
“ Mas a política que tem aqui parece feita para não me defender / se for pretinho não tem caô na saída leva uma geral / se não tiver nada, mas se eles cisma fala pra ir embora ou me dá um pau / eu já não agüento, tanto tormento eu não to conseguindo viver / quero a paz tranqüilidade andar na fé CDD / vejo muitas crianças aqui sofrer por que não tem nada para se ocupar / nem projeto e alimentação e escola para estudar / será assim que vai melhorar estão deixando nossas crianças em vão / mãe me desculpa a decepção hoje seu filho virou ladrão / eu fico triste abaixo a cabeça e logo começo a pensar / se no meu futuro Deus vai me ajudar por que meu filho eu pretendo criar / Perdi vários manos estou boladão, tenho certeza que não vão mais voltar / descanse em paz todos amigos que estão nesse lugar / mano Menor, mano Gu, não esqueço do

Cabeção/ do Alex, Zequinha e do Negão / Fico por aqui deixo um abraço para todos negros do Brasil / Djavan, Toni Garrido e meu mano Mv Bill / Eu sou negro, eu sou negro sim / tenho orgulho de onde moro e também tenho orgulho de mim / sou funkeiro, sou funkeiro sim / tenho orgulho de onde moro e também tenho orgulho de mim / Sou favela, sou favela sim / tenho orgulho de onde moro e também tenho orgulho de mim”.
A música de Bacardi tem um traço de pertencimento e de amor com o seu lugar, apesar das dificuldades e do descaso do governo perante os moradores da periferia, esse orgulho e afirmação de ser negro e favelado é algo muito cantando e representado também no Rap. A linguagem é muito comum ao Rap quando ele narra os Manos da CDD que se foram, aqui podemos perceber que esse Funk não está nem um pouco distante do Rap, a mensagem caminha num sentido de desabafo aonde um morador percebe a vitimização de seus irmão e do envolvimento de crianças com o crime, e se preocupa com o seu futuro, “como meu filho será criado nesse meio”.
A última canção escolhida é da dupla Mc Junior e Leonardo da rocinha e diz assim:
“Comunidade que vive a vontade com mais liberdade tem mais para colher / pois alguns caminhos para a felicidade são paz, cultura e lazer / comunidade que vive acuada tomando porrada de todos os lados / fica mais longe da tal esperança, os menor vão crescendo tudo revoltado / Não se combate crime organizado mandando blindado para beco e viela / pois só gera mais ira, para os que moram dentro da favela / Sou favelado e exijo respeito, são meus direitos que peço aqui / pé na porta sem mandado, tem que ser condenado não pode existir / Mãe sem emprego, filho sem escola, é o ciclo que rola naquele lugar / são milhares de histórias, que no fim são as mesmas podem reparar / Sinceramente eu não tenho a saída, como

devia o tal ciclo parar / mas do jeito que estão nos tratando só tão ajudando esse mal se alastrar / morre policia, morre vagabundo e no mesmo segundo outro vem para ocupar / o lugar daquele que um dia se foi, depois geral deixa para lá / agora amigo o papo é contigo, só um aviso para finalizar / o futuro da favela depende do fruto que você vai plantar / Refrão: Ta tudo errado, até difícil de explicar / do jeito que a coisa ta indo já passou a hora do bicho pegar / ta tudo errado, difícil entender também / tem gente plantando o mal querendo colher o bem”.
Nessa musica á o sentido de reivindicação da liberdade para os favelados, a palavra favela é constantemente repetida nos versos, a idéia do ciclo vicioso perverso que envolve o dia a dia da periferia e deságua no sofrimento e deterioramento da classe pobre culminando no extermínio de vidas. A violência do Estado é completamente combatida nessa música, fazendo menção que a única participação do estado na favela é pela força policial, e que isso só ajuda as coisas piorarem, trazendo a revolta e dor aos moradores da periferia.
Pegando esses três exemplos vemos que seguindo essa linha de Funk e se compararmos com a letra do Rap combativo, (lembrando que há muito rap comercial também), vemos que tem uma grande semelhança, uma narrativa que caminha num sentido par com o Rap e que aparece como forte expressão da juventude favelada brasileira. Questões que parecem ser pontuais no Rap como violência, desemprego, pobreza, falta de opção para a juventude favelada, preconceito, descaso do governo, violência policial, assim parece que tanto o Funk como o Rap diagnosticam e denunciam os mesmos problemas e revelam a adversidade diária de morar na favela.
Quando Bambata diz que Rap é Funk originalmente ele disse isso pela batida, mas creio que o Rap e Funk se aproximam não somente pela batida, mas pela própria origem do movimento, as letras, rimas, os atores sociais são da mesma procedência e carregam consigo o mesmo drama da exclusão social, do afastamento, preconceito e da barbárie.
Vejo o movimento Funk como mais uma voz da periferia e também como uma grande possibilidade de transgressão dessa sociedade desigual e que age como um forte multiplicador de vários sentidos e significados que mapeiam a experiência periférica, assim penso e reflito: será que o Funk é Rap ou Rap é Funk?

somos todos funkeiros!!

2 comentários:

  1. Muito bom!!!

    Estava na internet procurando a Letra da música do MC PINGO do Força do RAP, Barraco no Morro e acabei chegando ao seu blog Danilo. E nem sabia a princípio que era seu!

    Parabéns pelo conteudo e por essa matéria!

    Ass.: Suellen Suzano (DCE UFF, Coletivo Nacional Levante)

    ResponderExcluir
  2. Olá Danilo!
    Eu não te conheço, mas assim como a pessoa de cima eu estava procurando a letra do Barraco no Morro.
    Minha monografia está sendo um pouco sobre funk e criminalização da juventude. Foi muito bom encontrar seu blog e ler esse texto.
    Parabéns!

    ResponderExcluir